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quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

"Frio Ártico no Estômago"

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Zélia Duncan faz show único hoje no Metropolitan e conta como preparativos, preocupações e cuidados que toma na véspera e no dia de um espetáculo
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Dia de cantar não é dia comum. A gente disfarça: levanta, escova os dentes, aumenta o telefone, toma café, abre o jornal como se não estivesse procurando uma matéria específica, brinca com o cachorro. Mas existe algo à espreita, uma vigília muito anterior ao momento em que o próprio público estará esperando o início da apresentação.
O famoso frio no estômago, embora banhado de chá, permanece intacto, ártico e companheiro inseparável daquele dia comprido. A bem da verdade, a véspera já traz sintomas perturbadores, porque exerço sobre mim uma tortura que consiste em olhar o relógio e pensar: "amanhã, a essa hora, estarei indo para o teatro". E prossigo esbarrando no tempo: "amanhã, a essa hora, estarei pisando no palco...com o pé direito, claro". Até que, já na cama, lanço a última frase para meu monólogo interno: "amanhã, a essa hora, seja como for, o show já aconteceu". E durmo, quase sem querer.
Cantor é um bicho estranho, cada um tem várias manias e reações, digamos assim, bizarras. Conheci um cara em Brasília cujo pânico era tanto no dia de cantar que ele simplesmente começava a rir, já no camarim. O repertório era pesado, daí quando rolava uma daquelas canções mais introspectivas, falando das angústias infinitas da vida, ele ainda assim ostentava aquele sorrisão escancarado. Quando comecei a cantar, entrei na paranóia terrível de achar que qualquer brisazinha, qualquer pingo de chuva ou grito de guerra, poderia modificar minha voz para sempre. Dormia com um casaquinho pendurado na guarda da cama e a janela fechada, obviamente. Se chegasse na cozinha e a geladeira estivesse aberta, me enchia de pavor e implorava: "fecha isso , pelo amor de Deus!!" Ganhei naquela época o merecido apelido de Florzinha de Estufa. Claro que isso acontecia quando eu era menina, um pouco mais desinformada. Hoje, do alto dos meus 34 anos, sei que não sou tão frágil assim...mas as janelas continuam fechadas durante a noite e, embora torça muito para o meu país, no clímax da festa, dou um pulo, levanto os punhos fechados e digo só pra mim, "que bom, gol do Brasil".
Fui então fazer aulas de canto. Minha professora era maravilhosa, D. Eny Camargo, tudo que se esperava de uma "lírica". Corpulenta, sempre maquiada, sempre internacional, já havia cantado até na Rússia e, claro, adorava dizer os nomes das óperas e de seus autores em alto e bom som. Falo aqui num tom de brincadeira, mas ela, além de uma linda voz, me ajudou muitíssimo a pensar em respiração, registro vocal e relaxamento, para que a voz encontre seu caminho livre na hora de ecoar. Porém, numa noite, quando ela me levava ao portão após a aula, um cachorro todo preto surgiu e abocanhou ferozmente minha perna. Eu, chiquérrima, não quis constranger minha mestra e fingi que "não tinha sido nada". Fui embora uivando de dor, rolou anti-tetânica, curativo e tudo. Fico pensando se aquele cãozinho não estava querendo me avisar que eu ainda ia sentir na pele a responsabilidade não só de cantar, mas de ser chamada de "artista" e de ter o que dizer com isso. Caramba, aquilo doeu. (quando vim para o Rio, tive aulas com Pepê Castro Neves e Maria Lucia Valadão, ambos imprescindíveis)
Depois de muitas aflições, chás, méis, gengibres cristalizados ou não, gargarejos milagrosos, leite com açúcar queimado, preparado por minha avó, pastilhas de todas as cores e nacionalidades, fórmulas e simpatias, inventaram uma maneira de filmar as cordas vocais. FINALMENTE! A voz, objeto de aflição de toda uma vida, instrumento até então invisível, que nunca pude pegar, polir, plugar no afinador ou mandar para uma revisão, poderia ser registrada ao vivo e a cores numa fita de video só pra mim. Ufa... Minha carta de alforria, ou melhor, minha hora de ir à forra. Quando a fita me foi entregue fiquei olhando aquelas duas cortininhas claras, ("adoro cortinas que se abrem"), bem menores do que eu imaginava, embora não tivessem aquele jeito desprotegido que construí na minha imaginação. Pensei em todos os sonhos que depositei naquele pedaço tão pequeno do meu corpo e, como se um raio tivesse caído em cima de mim, percebi que não podia cantar só com as cordas: se minha saúde, minha cabeça e meu coração não estiverem razoavelmente equilibrados, não são elas, pobrezinhas, que vão arcar com tudo sozinhas.
Todo tipo de coisa pode acontecer num show. No dia do apagão, em março, era minha estréia em São Paulo. Por ironia do destino, eu cantava Sentidos, minha e do Christiaan Oyens: "não quero seus olhares/ quero seus cílios nos meus olhos/ piscando pra mim". Piscou e não voltou mais. Palco é assim, arriscado. O coração dá saltos mortais no peito, a palma da mão fica suando e quando você pensa que já passou pelo primeiro momento mais difícil, tudo ainda pode acontecer. Adoro essa montanha russa, você se apavora, mas depois o prazer é tão grande que você acha pouco e corre para a fila de novo. Acho que, por isso, não gosto de ver o palco sendo desmontado, me lembra que o show já acabou.
Hoje, antes de cantar, vou me maquiar, me aquecer nos exercícios de fonoaudiologia com Angela de Castro, com quem aprendi a proteger meu instrumento invisível, meu técnico vem me ajudar com os retornos de ouvido, gosto de ver os músicos antes do início do show. As luzes vão começar a se apagar, vou tomar um gole d’água, embora a boca vá continuar seca, darei um suspiro profundo e esquecerei todos esses preparativos, pois, neste caso, o melhor da festa é a festa mesmo!!

Zélia Duncan

Especial para o JB


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